Quase todo mundo já ouviu falar da batalha do passinho. Mas
o musical “Na Batalha”, transcende. Mais que um espetáculo de dança, o musical
mostra a batalha do cotidiano da favela através de um misto de linguagens
artísticas. Teatro, baile, show, dança afro-contemporânea, tecno-funk-rave,
projeções de artes visuais alucinantes... “Na Batalha” é tudo isso e algo mais.
Depois de assistir ao espetáculo no Teatro João Caetano, conversei
com Vadinho, cantor e um dos compositores do musical. Ele explicou o trabalho
da bailarina (Lavínia Bizzotto) que ensinou os meninos do passinho, acostumados
ao improviso frenético do baile, à baixar a adrenalina e contar tempos. O que
eu vi foi uma dança contemporânea, diferente de tudo que eu conheço, animada,
emocionante, mas sem aquela áurea sombria e incompreensível que alguns
espetáculos de dança pós-modernas tem.
Ele também falou sobre a composição das letras escritas para
o musical, sob a direção do escritor Julio Ludemir, que também é oriundo de
favela e possui uma longa trajetória em assuntos polêmicos da periferia. Dessa
parceria, surgiram letras simplesmente maravilhosas que contam de uma forma
singular a história das diversas batalhas do morador de comunidade, abordando
os assuntos cruciais para o debate contemporâneo.
O espetáculo poderia facilmente cair no exotismo ou no didatismo,
mas não o faz. Ele oferece um panorama do funk desde as raízes na soul music
americana, mas vai muito além da temática da dança tocando em questões complexas
de uma forma muito autoral e para além
do politicamente correto. Quer ver?
“Já cheirei chorando
Só fui me acabando
Já fumei sabendo que eu estava me matando.
Praia, funk, futebol
No meu Rio da empate
Nem a guerra do Iraque
É mais forte que o crack.”
(trecho da canção Na Batalha do Crack)
Sentiu a pressão? Enquanto rola essa letra, tem um muleke
sinistro que dança os movimentos do crakudo de um jeito de arrepiar a alma. Já
“Na Batalha da Dignidade”, os meninos encenam a típica “dura” que o negro pobre
está acostumado a receber da polícia.
“Eu já pedi seu moço
não bate na minha cara
eu sou trabalhador
não sou bandido não.
Posso ser negro na cor
mas minha bandeira é branca.
deixa a minha vida mansa eu levar"
Esse papo reto, rimado e ritmado vai tocando o público e ajuda
quem não está próximo a essa realidade a perceber a realidade de um jeito
diferente do que costuma ser retratado pela mídia.
Vadinho também comentou, que os meninos do passinho de
vez em quando lembram frases das músicas em alguma conversa. Ou seja, é letra para desenrolar. É
a arte servindo ao diálogo, arma poderosa
na “Batalha da Mente”:
“É hip hop, oficina de cinema, capoeira,
percussão, grafite, balé, judô...
Geral tá querendo entrar na mente do menor
bolado.
Geral tá querendo levar o menor bolado no
desenrolado”.
Eu também sou dessas pessoas que estão querendo entrar na
mente do menor bolado, fazendo projeto social na favela e etc... Fiquei muito
feliz por conseguir ingresso para os adolescentes do Projeto Turista Aprendiz
assistirem ao espetáculo neste sábado. Mas a via é de mão dupla e que essas
letras também já entraram na minha cabeça. E é esse diálogo que faz muita falta
na nossa cidade partida de estereótipos e preconceito.
Mas trocar ideia não é só concordar e aplaudir. Mesmo tendo
me encantado com a peça não posso dizer que gostei de tudo. Faltou uma voz
feminina. Eu queria saber da batalha da mulher na favela. Logico que a única
dançarina representou perfeitamente o gênero. Mas ainda foi pouco. A canção “O
Gigante Acordou” diz que na seleção
brasileira do trabalhador até as minas estão convocadas – uma referencia ao
futebol como esporte só de homens – verdade, mas é preciso lembrar que as
mulheres da favela não só estão convocadas necessariamente para esta seleção
como para muitas outras em múltiplas jornadas de trabalho, casa e crianças.
Outra crítica pode ser feita à música que diz:
“Quando eu lanço o meu Nike no pé
sinto o meu corpo flutuar
só deus sabe o duro que eu dei
quanto que eu ralei
para poder me bancar”
Uma clara apologia ao consumo, que droga! O grande
paradoxo é que não há Nike no mundo faça esses meninos flutuarem como eles
fazem naquele palco. Se por um lado dizem que “o que importa é dinheiro no bolso ser considerado e gastar com as novinhas”,
por outro, estão fazendo arte de tal qualidade que os torna capazes de
conquistar corações independente da conta bancária.
Mas não quero fazer patrulha ideológica. Prefiro fazer
como os personagens Betinho e Carlinhos, de universos e classes sociais diferentes
que aprendem um com o outro na Batalha do Playground.
“ É a batalha do play, é
batalha do play
Tu me ensina o que tu sabe
Que eu te ensino o que eu sei”
Fico feliz de saber que os garotos vão para Nova York.
Lá, com certeza vão fazer os gringos pirar. Mas tomara que disponibilizem a
tradução das letras das canções para sustentar a mensagem, embora a expressão
corporal também seja capaz de comunicar. Espero também, que este muleques levem
a arte para toda a parte e sigam adiante desenvolvendo e amadurecendo o
trabalho.
“Na Batalha” deve ser visto do chão, no corpo a corpo da
favela, por quem pode ser ver nesta expressão e dançar junto com a galera. Ao
mesmo tempo, o musical merece os palcos. Sendo do morro, vem do alto e nos
eleva. Esses anjos flexíveis fascinam, iluminam e nos revelam que na batalha se
está a um passinho do céu.
Agora eu me pergunto:
“Será que lá na lua
algum astronauta viu
Na face
do planeta as favelas do Brasil?”
Por:
Alice Souto – ally_paiva@yahoo.com.br
Poeta, Psicóloga e
produtora do projeto Turista Aprendiz.
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